terça-feira, março 21, 2006

RITUAL DOS BESTAS-FERAS

Recomeço das aulas nas faculdades e universidades e todo ano é a mesma coisa, pessoas carecas, os bichos e bichetes fazendo “pedágio” nos semáforos nas esquinas da cidade pedindo “uns trocado” para depois os veteranos utilizarem como cerveja.
Em pleno ano de 2006, século 21, tempos de modernidades temos neste país medieval esse ritual de "iniciação". O ritual daqueles que consideramos os mais capacitados, as pessoas com mais conhecimento na sociedade. É de certa forma um ritual dos mais privilegiados, dado que alguns indicadores revelam que 50% da população é analfabeta funcional neste país tupiniquim.
Tal rito é conhecido de todos: o trote.
Incrivelmente eu passei algumas horas tentando encontrar alguma finalidade pra tal evento, mas não consegui encontrar. Em um jornal recente foi publicado uma foto de um estudante sujo de tinta e lama, com uma melancia na cabeça, dançando sobre uma garrafa. Outra estudante declarou: "Eles jogaram ovos e tintas. Estou me sentindo suja, mas feliz como nunca".
No bom filme “uma amizade sem fronteiras” com o ator Omar Sharif, há o destaque sutil de que o lixo é um indicador se o país é desenvolvido ou não. Se tiver lixeiras limpas e pouca sujeira é porque o país é rico e organizado, poucas lixeiras e muita sujeira é sinal de que o país é subdesenvolvido.
Bem como no filme de Omar Sharif acredito que é possivel analisar o sistema educacional, no caso a falencia do sistema educacional brasileiro. Quando uma pessoa obriga e a outra se sujeita ao ridículo de se sujar, pendurar coisas na cabeça e ainda ficar feliz com isso algo não anda bem. Pelo menos nunca vi um país avançado e moderno com tamanho nível de civilidade. Onde está a educação nisso tudo? Índios que nunca freqüentaram uma aula de maternal ou jardim de infância são capazes de apresentar um nível educacional de respeito muito maior.

A inspiração para escrever este texto foi um artigo do jornalista Vinicius Torres Freire, o qual me sinto na obrigação de publicar integralmente, pois expressa perfeitamente nos mínimos detalhes muitos dos meus sentimentos em relação a este assunto:
“O Ritual brasileiro do trote
SÃO PAULO - Estamos na época dos trotes em calouros de universidade, um ritual coletivo tão brasileirinho quanto o Carnaval e a carnavalização da Justiça nas CPIs.
O trote é medieval como a universidade e quase deixou de existir em lugar civilizado. No Brasil, é um meio de reafirmar, na passagem para a vida adulta, que o jovem estudante pertence mesmo a uma sociedade autoritária, violenta e de privilégio. Submissão e humilhação são a essência do rito, mas expressivas mesmo são suas formas: o calouro é muita vez obrigado a assumir o papel de pobre brasileiro. A humilhação também faz parte da iniciação universitária americana, embora nesse caso o rito marque a entrada na irmandade, sinal de exclusivismo e vivência de segredos de uma elite que se ressente da falta de aristocracia e de mistérios em sua sociedade ideologicamente igualitária e laica. De início, como em muito ritual, o jovem é descaracterizado e marcado fisicamente. É sujo de tinta, de lama, até de porcarias excrementícias; raspam sua cabeça. Ao mesmo tempo que apaga simbolicamente sua identidade, a pichação do calouro lhe confere a marca do privilegiado universitário (são poucos e têm cadeia especial!). Pais e estudantes se orgulham da marca suja e da violência.Na mímica da humilhação dos servos, o jovem é colocado em fila, amarrado ou de mãos dadas, e conduzido pelas ruas, como se fazia com escravos, como a polícia faz com favelados. É jogado em fontes imundas, como garotos de rua. Deve esmolar para seu veterano-cafetão. Na aula-trote, o veterano vinga-se do professor autoritário ao encenar sua raiva e descarregá-la no calouro, com o que a estupidez se reproduz.
Como universidade até outro dia era privilégio oligárquico, o trote nasceu na oligarquia, imitada pelos arrivistas. Da oligarquia veio ainda o ritual universitário do assalto a restaurantes ("pindura"), rito de iniciação pelo qual certa elite indica que se exclui da ordem legal dos comuns.
De vez em quando, ferem, aleijam ou matam um garoto na cretinice do trote. Ninguém é punido. Os oligarcas velhos relevam: "acidente".Não, não: é tudo de propósito.”

Quando da morte da estudante, branca, loira e rica, Liana Friedenbach de 16 anos junto do namorado Felipe Silva Caffé de 19 anos em novembro de 2003 pelo “monstro” Xampinha de 16 anos, foi feita uma pesquisa onde 84% dos entrevistados defendiam a redução da maioridade penal. A idade ideal seria 15 anos e 62% defendiam que a redução deveria valer para todos os crimes. A repercussão do crime gerou até uma cogitação popular para a condenação de pena de morte, ou a legalização da pena de morte ou de penas mais severas.
Pois bem, 23 de fevereiro de 1999 morre Edison Tsung Chi Hsueh aos 22 anos na piscina da Faculdade de Medicina da USP, a história todos conhecem, aqueles que participaram do trote sabem certamente quem matou, fato é que no final da história o processo foi arquivado “por falta de justa causa”. Para os advogados da defesa “o que se entendeu é que não foi um homicídio, mas um acidente”. Quem sublinhou o acidente foi eu mesmo, o autor. Acidente repito, acidente. Imaginem calouros fazendo “pedágios” pelos semáforos da cidade quando um bandido armado acidentalmente dispara sua arma, até sem intenção, mas mata uma garota branca e loira, ou um rapaz de uma “tradicional” família como alguns dizem. Prefiro nem comentar, basta olhar a história.
Voltando para o caso do chinês-calouro afogado eis um depoimento da mãe do rapaz em um jornal recentemente: “Depois do que aconteceu, ficamos alguns anos doentes, forçando o coração para esquecer. Meu marido ficou quase um ano sem ter vontade nem de comer. O consolo depois que meu filho morreu é a esperança de que isso não aconteça de novo. Quando os estudantes entram na faculdade, o aluno antigo deve ir almoçar, passar filmes, ensinar o caminho para o novato.”
Esta é a esperança da mãe do estudante vítima de um trote, mas a realidade como sempre tende a ser mais cruel. Notícia recente: “O calouro de administração de empresas Tiago Rosa Careta, 21, teve a cabeça e o pescoço queimados por um produto químico lançado sobre ele no primeiro dia de aula da universidade, que é a maior particular da região de Franca. O produto foi jogado na cabeça do calouro e queimou o cabelo, o couro cabeludo e parte do pescoço, além de manchar alguns dedos. A mãe do calouro, a funcionária pública Maria Luiza Careta, 41, disse estar "horrorizada": "Poderiam ter cegado ele.”“.
Obviamente não são todos os trotes que acabam em tragédia, contudo todos os trotes incluem repressão, violência e agressão ainda que não física. Alguns alegam que o trote é um grande evento de integração e confraternização, mas não é parte da cultura brasileira as confraternizações familiares, empresariais e entre amigos serem realizadas com ovadas, gritos e muita estupidez. Pelo menos quando eu vou comemorar algo com alguém, isso não ocorre como se estivéssemos no tempo medieval.

Eu pessoalmente não consigo entender ou encontrar uma lógica para tanta burrice, ainda que eu me considero uma das únicas vozes contra o trote dentre as pessoas que conheço. A vida é banalizada e vale cada vez menos. As pessoas freqüentam mais de 10 anos nas “melhores” escolas e não conseguem aprender o que deveria ser a lição mais básica, que é o respeito ao ser humano. Existem coisas como o trote e a relação entre os estudantes de nível universitário que definitivamente, pelo menos para mim, demonstram se um país é ou não desenvolvido. Não adianta o país mudar a política monetária, ser mais ou menos ortodoxo, reduzir ou aumentar a taxa selic.
Independente da política econômica que rege o país e que tende a ser um dos principais temas da eleição deste ano como poderemos ser desenvolvidos reproduzindo atos estúpidos e “bestas-feras” como descritos acima? Atos irresponsáveis justamente daqueles mais educados de uma nação de analfabetos. Aqueles que deveriam dar o exemplo e liderar o país ao desenvolvimento se divertem com tamanha estupidez de um modo irreproduzível por nenhum asno no mundo.

No Brasil tem coisas que funcionam na base do “acidente”, “acontece, fazer o quê?”. Na coluna do jornalista Clóvis Rossi, apresentada no dia 21 de fevereiro, com o título de “A animalização do país”, talvez traga respostas (ou mais dúvidas) para o absurdo do trote. Disponibilizei o texto no blog (http://ruyhirano.blogspot.com).


Ruy Hirano, 20, estudante de administração.

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